"Viemos do Oriente adorar o Rei" |
O
evangelho de Mateus, no seu capítulo II, apresenta quatro episódios que formam
uma unidade: a visita dos magos, seguido pela matança das crianças de Belém e
da consequente fuga para o Egipto; o quarto episódio é o regresso a Nazaré, à
morte de Herodes. A solenidade da Epifania (= manifestação) encerra o ciclo
natalício, precisamente no dia em que a Igreja Ortodoxa celebra o Natal.
Escrito
originariamente para uma comunidade judeo-cristã e em polémica com a sinagoga,
o evangelho de Mateus mostra desde o início que o acolhimento de Jesus por
parte dos seus não foi nada triunfal, pelo contrário, encontrou hostilidade ou
indiferença. A nota negativa inicial acentua-se no decurso do evangelho,
anunciando que «os filhos do reino serão lançados fora nas trevas»; filhos
degenerados, presentes simbolicamente na parábola dos vinhateiros homicidas e
realisticamente quando «todos eles responderam: seja crucificado».
Admira,
à primeira vista, a presença de magos, referidos com toda a naturalidade,
quando em toda a Sagrada Escritura eles são condenados.
O termo «mago»
referia-se originariamente a uma tribo de Medi que se desenvolveu numa casta
sacerdotal, presente depois na Babilónia, Pérsia, Capadócia e outros lados.
Mateus apresenta-os sob uma luz favorável e de modo genérico sem fornecer uma identificação,
número (pelo menos dois porque se fala no plural) ou condição social; apenas se
indica com uma certa aproximação a proveniência: «do oriente», sem excluir que
se possa entender a Arábia ou zonas confinantes, todas elas a oriente da
Palestina. Será a interpretação posterior a enriquecer a sua pessoa,
tornando-os reis e dando-lhes uma proveniência exacta, um número e um nome,
elementos que variam conforme as tradições. Já Tertuliano, no séc. III, lhes
chama reis. O Evangelho de
Infância Arménio, versão do siríaco à volta do ano 590, conhece-os
como três irmãos, com os nomes de Melchior, Gaspar e Baltazar, chama-lhes reis
e fá-los vir da Pérsia, onde um anjo foi avisá-los. Na tradição latina são
dois, três ou quatro, na tradição siríaca posterior o seu número sobe para
doze. Segundo o Evangelho
árabe da infância, cujo original poderia ser do séc. VI-VII, uma
profecia de Zoroastro teria levado os Magos ao conhecimento do nascimento
extraordinário dum menino. A Caverna
dos Tesouros, do séc. VI, é a narração mais antiga da viagem dos
Magos. Os seus dons referem-se àquilo que Adão, depois da queda, teria trazido
dos confins do Paraíso e depositado numa caverna.
A
nossa narração não tem nada de condenação: os magos representam as primícias da
futura profecia de Jesus: «Eu digo-vos que muitos virão do oriente e do
ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaac e Jacob no reino dos céus» e
penhor da futura missão da Igreja: «Ide e ensinai todas as nações,
baptizando-as…». A sua viagem, os seus dons, a sua atitude são expressões
daquela prostração-adoração que, como trama unificadora, serve à teologia de
Mateus para mostrar como Cristo deve ser procurado e por quem ele se deixa
encontrar.
A
estrela que guia os magos é muito peculiar: aparece, desaparece, anda, pára,
move-se de norte para sul e não de este para oeste como as outras. É na Sagrada
Escritura que vamos encontrar este astro preanunciado pelo profeta Balaão (Nm
24,17.19) referindo-se à «estrela que se ergue de Jacob e ao ceptro que se
ergue de Israel». Jesus é a Estrela que conduz até Ele, a verdadeira Luz que
ilumina todos e cada um dos homens.
O
texto tem o seu centro ideal e teológico em Cristo. Ele é apresentado como o
verdadeiro Rei que merece ser procurado e adorado. Até Ele vêm pessoas de
longe, guiadas pela luz da estrela e pelas Escrituras. Jesus é uma criança, não
diz uma palavra e, no entanto, a sua existência divide os homens. A passagem do
evangelho contém um ambiente de tensão, seja na intenção persecutória de
Herodes que acabará em tragédia, seja na irresponsável atitude das pessoas de
Jerusalém, a começar pelos sumos-sacerdotes e escribas do povo. A morte do
Messias, com a qual culminará a rejeição de Jerusalém, lança a sua sombra nesta
recusa inicial. Com este objectivo Mateus ajuda o leitor com a citação bíblica
(Mq 5,1) e com a figura dos Magos. Com a citação preanuncia-se a vinda do mais
ilustre descendente de David que cuidará do seu povo, fazendo sua a actividade
própria de Deus (cf. Ez 34). A adoração dos Magos remete o leitor para a
grandeza de Cristo, filho de David, Filho de Deus e Emanuel. Assim a perícopa serve
o interesse cristológico de todo o Mt 1–2.
O
rei citado por Mateus é Herodes, o Grande, que reinou na Palestina de 37 a 4
a.C., tendo ficado famoso pela sua crueldade, pelas suas construções, entre as
quais o início da construção do Templo de Jerusalém, e pela sua habilidade
política. A notícia do nascimento dum possível rival que reivindica o trono do
reino não podia deixar de preocupar. Por isso, o comportamento de Herodes é
frio e calculista: informa-se com exactidão, para eventuais acções preventivas
ou punitivas, e em segredo. Embora convide os estrangeiros a dirigirem-se para
a localidade indicada pelas Escrituras, nem ele nem qualquer outro da sua corte
ou se Jerusalém se move.
«E…
ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra». Os dons dos Magos em certo
sentido interpretam a adoração. Ninguém se apresentava diante perante uma
pessoa importante de mãos vazias. O dom servia para reconhecer e em parte para
diminuir a distância entre quem oferecia e quem recebia; neste sentido se deve
interpretar a disposição de Ex 23,15b:
«Não se deverá aparecer diante de mim de mãos vazias». Quando se consideram os
três dons (o número impôs-se tradicionalmente também para os Magos) não é
difícil notar o seu valor simbólico. O ouro é o metal precioso, tanto mais que
na Palestina não havia forma de o explorar; a Arábia, porém, era uma das zonas
de extracção. O incenso era uma resina perfumada de várias plantas, usado no
culto, provavelmente não proveniente da Palestina, mas importado também da
Arábia. A mirra era uma outra resina perfumada existente na Arábia e na
Etiópia, empregada como perfume, como componente para o óleo santo da unção e
como aroma sepulcral. Facilmente os primeiros cristãos leram o sentido daqueles
presentes: aquele menino é Deus (incenso), rei (ouro) e irá passar pela morte
(mirra).
A
homenagem dos Magos ao rei/Deus menino é a correcta resposta humana ao Emanuel,
Deus connosco. O c. 1, apresentando a genealogia e o nascimento, ficava no
mundo judaico. Com este texto, que abre o c. 2, o mundo passa a compreender
todos os povos. O episódio dos Magos pode ser lido como uma grande profecia já
a realizar-se, enquanto se declara já iniciada a peregrinação dos povos
anunciada por Is 60 e pelo Sl 72. A nova comunidade é a Igreja sem fronteiras
que se deixa guiar pelos sinais e pelas palavras proféticas ao encontro do seu
Senhor.
P.
Franclim Pacheco
Diocese
de Aveiro