Nas leituras deste 3° Domingo da Páscoa, encontramos alguns títulos do Cristo aos quais
estamos pouco acostumados: o Servo, o Santo e o Justo. Referem-se ao
Servo Padecente do Dêutero-Isaías. Revelam um acontecimento importante
no seio da primitiva comunidade cristã: a releitura das Escrituras
(A.T.) à luz dos eventos da morte e ressurreição de Cristo.
Tal releitura é, propriamente, a obra do Espírito nos primeiros anos da
jovem comunidade. Porém, Cristo mesmo preside a esta obra, como nos
mostra o evangelho de hoje (a aparição aos Onze
reunidos no cenáculo). Jesus lhes mostra o que “na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos” (as três partes das escrituras) está escrito a
respeito do Messias, especialmente, que ele deve sofrer e morrer e, no
terceiro dia, ressuscitar.
A comunidade dos primeiros cristãos esforçou-se para reconhecer naquele que os judeus entregaram e mataram (cf. At 3,13-14; 1ª leitura) aquele
que as Escrituras anunciaram. Tiveram que descobrir um fio escondido,
que os outros judeus (pois também eles eram judeus) não enxergaram: a
figura do justo oprimido, do servo sofredor, do messias humilde, do
pequeno resto, do profeta rejeitado… Enquanto o judaísmo em geral lia as
Escrituras com os óculos de um messianismo terrestre (geralmente
nacionalista), os primeiros cristãos descobriram na aniquilação e
ressurreição de Cristo a atuação escatológica de Deus, a nova criação, o
início do Reino de Deus por meio de seu “executivo”, o Filho do Homem
(cf. Dn 7), que – acreditavam – voltaria em breve com a glória e o poder
do Céu. E este Filho do Homem era, exatamente, o messias desconhecido, presente em textos que não descrevem o poderoso messias davídico, mas aquele que devia sofrer e morrer.
Esse trabalho da primitiva comunidade, iluminada pelo Espírito do
ressuscitado, é um exemplo para nós. Eles fizeram essa releitura para
poder dizer aos judeus, em categorias judaicas, que Jesus era, mesmo, o
esperado, o dom de Deus, o sentido pleno, a última palavra de nossa vida
e de nossa história. Nós, hoje, devemos anunciar a mesma mensagem
utilizando as categorias de nosso tempo. Isso não é simples, pois as
categorias determinam em parte a percepção das coisas e, portanto,
também o conteúdo da mensagem. Devemos ler o “Antigo Testamento” de
nosso tempo, isto é, a linguagem em que nosso tempo exprime suas mais
profundas aspirações. Nem sempre é uma linguagem religiosa. Pode ser
uma linguagem política, “histórico-material” até! Como recuperá-la para
dizer: “Jesus é o Senhor”? Tarefa difícil, mas não impossível.
Nenhuma página do A.T. era estritamente adequada para traduzir a
mensagem das primeiras testemunhas de Cristo, nem mesmo as páginas do
Dêutero-lsaías (p.ex., o Servo de ls 53,12 aparece como recompensado, em
sua vida, pela fama, a honra etc.; isso não se aplica diretamente a
Jesus). A mensagem transbordava das categorias. Isso acontece também
hoje, quando dizemos que em Jesus temos a “libertação”, categoria
socioeconômica da dialética materialista. Porém, a inadequação das
categorias não nos dispensa de usá-las para dizer aos nossos
contemporâneos, numa linguagem que neles encontre ressonância, o que
devemos testemunhar. Exatamente para superar a limitação da linguagem e
transmitir algo que é “revelação”, algo que não está no poder de nossa
palavra, age em nós, até hoje, o Espírito, que, nos primeiros cristãos,
completou o que Jesus havia iniciado naquela tarde: a releitura das
Escrituras.
A história pós-pascal é uma história de meditação e interpretação do
evento de Jesus Cristo. Devemos continuar essa história. Mas ela é,
também e sobretudo, a história da encarnação de sua mensagem no amor
fraterno, conforme o preceito de Jesus (cf. 2ª leitura). Esta encarnação
é, certamente, a melhor “tradução” da mensagem pascal. No amor fraterno
da comunidade cristã, o mundo enxerga o Ressuscitado, o Cristo vivo.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Retirado de: